Há duas espécies de Homens: os que lêem e os que criam.
Houve um livro que quis ler e não li. Odiei-o, não o compreendi. Quase obliterei o autor nesse dia, mas degredei-o por anos. Ele um génio, eu imbecil. Depois percebi, faltava-me tempo e caminho. Ofereci esse livro, que ainda temo, por altura da minha incompetência. Nunca voltei a tentá-lo. Optei por outros e hoje, esse autor que desdenhei, quero que viva para sempre, por ser um dos meus favoritos.
Porque há duas espécies de Homens: os que se arrependem e os que nunca reconsideram.
Durante anos temi pegar numa caneta. Quanto mais lia mais evitava. Deixei de ler. Restaram as memórias obscuras da minha realidade singela, exígua, perante a imensidão de clarividência alheia que me assombrava de fora. Assisti impávido à vida dos outros, como livros abertos que me desinteressavam, as suas realidades exóticas, os seus feitos excêntricos, apontamentos publicitários de uma existência que desconheço. Incompreendido, por não saber copiar, pesaram-me os olhares que sustentei de reprovação e calúnia. O medo de reproduzir assolava-me com frequência, a insónia dominava-me por vezes, pelo temor de não conseguir recordar o que era incapaz de redigir.
Porque há duas espécies de Homens: os valentes e os cobardes.
Compreendi que, para ter memórias, não precisava de ler; precisava de ter vivido. Deixei-me então levar sem resistir. As mentiras em que me refugiei faziam acreditar que vivia. A honestidade tem implícitos a resistência, o exemplo, a discórdia, a acção. Todos incapacidades que assumi, inocentemente, com frequência. Infiel a mim próprio, percorri caminhos paralelos ao traçado que deveria ser o meu, alguns sem retorno.
Porque há duas espécies de Homens: os leais e os que mentem.
Fui comandante inepto, subalterno de incompetentes e servidor de incapazes; nem sempre por esta ordem. Corrompi-me a construir destinos que, por simpatia apenas, construíam o meu. Perdi batalhas e guerras, das que venci não me restou particular orgulho, por não serem maioritariamente minhas; das outras não há registos que me socorram.
Porque há duas espécies de Homens: os que montam e os que se deixam montar.
A cedência a paixões, fraqueza congénita, condenou-me por fim a aceitar o meu destino. A medo encetei um livro e li-o em desespero. A dificuldade de lidar com os conceitos, de voltar a apreender o alheio, o medo do regresso à intrusão na essência de alguém, fui-os dizimando em parágrafos, páginas, capítulos. Entreguei-me por fim, como quem reconhece uma amante e a beija com fervor, sequioso, após anos de contenção. Voltei a temer perder a escrita outra vez.
Porque há duas espécies de Homens: os que amam e os que só conhecem o desdém.
Descuro com frequência os interesses que não me interessam, sinto-me um pária também, por vezes; mas os que me interessam persigo-os com fervor, sem esperança na conquista de adeptos para a minha causa. Uma tenacidade invisível mas indelével impele-me como um instinto, por vezes para o abismo, destino que pelo meu egoísmo atinjo sozinho.
Porque há duas espécies de Homens: os que vivem e os que vão morrendo.
Gosto de caminhar na areia húmida, onde as ondas se abatem; ver essa força imensa recear os meus passos e recuar perante a minha insignificância. Uns dias sou da terra, noutros sou das águas, nestes chego a acreditar que é a terra que me teme e que me deixará cavalgá-la eternamente; é nos outros que reconheço como estou enganado.
Porque há duas espécies de Homens: os que escutam o mar num búzio e os que recolhem búzios no mar.
Por haver apenas duas espécies de Homens, e não me enquadrar em nenhuma, suspeito que poderei ser afinal o único cromo desta caderneta; um exemplar de uma terceira espécie, em vias de extinção mas sem protector que me valha.
(Algures na Baixa - Lisboa)
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