Foi naquele sítio novamente. Não fiz de propósito, acreditem. Encontrei-me casualmente comigo há dias.
Havia tempos que não me via.
Estava sentado num penedo. Agachei-me e perguntei-me o que tinha. Olhei-me nos
olhos... Não... O olhar estava parado, fixo num ponto de fuga, a quilómetros de
distância. Respondi que não tinha nada, enquanto recordava os meus, que amo, e
uma vida por acabar.
Olhei-me com o mesmo olhar vazio, sem emoção que
classifique o bater do coração.
Tenho vindo a adequar o discurso, pela
constatação clara de que já não importa o "ser" das coisas. Importa-lhes
principalmente o "ter". Daí que o saber, aquela faixa estreita onde a crença e a
verdade se sobrepõem, pouco importe; porque é relativo, muito
relativo...
Às voltas com este transe... O sábio que antes invejámos ao
afirmar "só sei que nada sei", demonstrando clareza sobre a enorme variedade de
conhecimentos que houvesse para apreender, face à diminuta capacidade do Homem
para tal grandeza, hoje é o que apregoa ao vento "só sei que nada
tenho".
Por isso a inteligência se mede cada vez mais pelo sucesso, pelas
influências apropriadas, do que por formas de pensar. Louco já não é o que se
passou do juízo, que se designa, também em contra-senso, por "infeliz". Louco é
o que vive sem nada, porque nada soube amealhar, esse sim temido e repudiado por
todos.
Consequentemente tenho de admitir que "tenho, logo, existo". Deixo
para trás o paralelismo em que a consciência do ser se relacionava com a
actividade cognitiva, negando o insano. A afirmação do sábio remete-nos agora,
por silogismo, à definição de existência apenas para quem possui.
Esta
afirmação completa-se em círculo; pela conclusão de que o sábio, que afirma que
nada tem, na realidade estar em rota de negação com a sua própria existência, o
que confirma a tese de que o saber é, não apenas tendencialmente inútil, como
uma via directa para o ostracismo, para a marginalização, para o
degredo.
A sociedade ensina-nos que sem ter não haverá saber, e isso
definirá a nossa permanência. O saber, que nos negaria a essência, é-nos assim
fornecido a conta-gotas. Na medida exacta a permitir que continuemos a fomentar
a ambição, e dessa forma levar-nos a justificar a nossa
existência.
Tecidas estas considerações sumárias comigo, resta-me a
imodéstia de vos confessar que não existo. O que me torna no imortal mais
procurado do planeta. Sou também, por isso, o único sábio ignorante, e aqui
aproximo-me do conceito antigo, mas por razões diversas...
Deixei-me a
olhar inexpressivamente para o tal ponto de fuga. Afastei-me desse louco que
nada tem.
Ao fundo as luzes da cidade atraíram-me como cantos de sereia.
A tal cidade... Onde de tudo existe, a mesma onde nada se sabe, aquela onde tudo
se conquista.
E fiquei a pensar, numa ambição antiga... Se ao menos tivesse juízo... Mas não tenho :)
Sem comentários:
Enviar um comentário