Estava eu a planear um sábado desportivo com jantar "futebolês" e eis que a minha amiga X, violinista e utópica de religião, perguntou-me se eu queria
jantar, que estava ali perto, que as saudades não podem ser alimentadas e que
seria uma coisa boa com um grupo dos seus amigos de trabalho (músicos, actores e
poetas). Eu disse sim, que as saudades devem ser assassinadas de baioneta, numa
boa mesa de jantar, que também estava ali perto e que um grupo fechado na
ciclicidade das artes aspirará sempre ao jantar perfeito. O São Carlos servia de
palco, a boa comida de cenário, o vinho tinto de inspiração e as palavras
pareciam alinhar-se, ajeitar-se, talvez mesmo, aninhar-se aos lábios de quem
dizia. Depois não me lembro bem como foi. Acho que falavam de instrumentos, das
pessoas a serem instrumentos qual seriam. E eu disse: "que cada ser tem um
som, cada pessoa tem um som e uma zona de si vazia. Que tal como no universo, em
nós não há ruído, há som. Que é nessa zona de si vazia que as palavras do outro
ressoam e fazem sentido. Que é ali, naquela zona, que o eco se faz e as palavras
se diluem dentro de nós, até que façam parte de nós. Expliquei que em mim, as
palavras caem dentro do meu peito, caem dentro de mim, devagarinho, como se
tocassem num xilofone. Um grande xilofone balinês... E que se me deixar tocar
por elas, ouvirei o ressoar do coração, escutando os sons do afecto. Em pequenas
notas de xilofone. Em pequenas gotas da pessoa que está à minha frente." Em
seguida houve um silêncio. Um desconforto. Uns rostos que me olharam "who
brought the fucking alien?" Até alguém falar de algo que fez nascer novamente o
ruído, a conversa, o burburinho. A X sorriu-me como quem contempla algo de
arte totalmente out, que se admira profundamente com carinho, mas não se entende
por mais que se estique a ternura. Como se eu fosse um Kandinsky, cheio de
promenores tão inacessíveis e tão belos no conjunto. Eu sorri-lhe de volta, como
se fosse o cérebro do próprio Kandinsky - esquizofrénico, cheio de perguntas,
cheio de certezas, parte do Cavaleiro Azul, rodeado de artistas e eternamente
sozinho. Gosto desta minha fase.
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