segunda-feira, 4 de junho de 2012

Duas espécies.

Domingo. Sol com fartura e muito para lá das previsões. Uma banda reggae sem pretensões mas acima das expectativas. Tínhamos chegado cedo. Deu para escolher o melhor sítio e depois mudar para outro ainda melhor. Deu para tudo. Para sentir o cheiro das árvores. Da ganza que se fumava ali à volta. Deu para falar de nada com quem não se conhecia. Deu para confiar "Olha aí por isto um bocado que vou só ali buscar mais uma". Deu para parar. Deu para as ver a brincar sem quererem parar. Deu para olhar. Deu para perceber que olhando para mim isto até nem vai mal. Há um caminho. O meu. Mas há mais. Não são os meus. Deu para perceber que existem duas espécies de homens. Nunca escrevo em papel. Não gosto e a minha letra é horrível. Nem eu a percebo. Mas ontem gostava de ter podido escrever tudo isto. Tinha-me saído melhor de certeza.
Há duas espécies de Homens: os que lêem e os que criam.
Houve um livro que quis ler e não li. Odiei-o, não o compreendi. Quase obliterei o autor nesse dia, mas degredei-o por anos. Ele um génio, eu imbecil. Depois percebi, faltava-me tempo e caminho. Ofereci esse livro, que ainda temo, por altura da minha incompetência. Nunca voltei a tentá-lo. Optei por outros e hoje, esse autor que desdenhei, quero que viva para sempre, por ser um dos meus favoritos.
Porque há duas espécies de Homens: os que se arrependem e os que nunca reconsideram.
Durante anos temi pegar numa caneta. Quanto mais lia mais evitava. Deixei de ler. Restaram as memórias obscuras da minha realidade singela, exígua, perante a imensidão de clarividência alheia que me assombrava de fora. Assisti impávido à vida dos outros, como livros abertos que me desinteressavam, as suas realidades exóticas, os seus feitos excêntricos, apontamentos publicitários de uma existência que desconheço. Incompreendido, por não saber copiar, pesaram-me os olhares que sustentei de reprovação e calúnia. O medo de reproduzir assolava-me com frequência, a insónia dominava-me por vezes, pelo temor de não conseguir recordar o que era incapaz de redigir.
Porque há duas espécies de Homens: os valentes e os cobardes.
Compreendi que, para ter memórias, não precisava de ler; precisava de ter vivido. Deixei-me então levar sem resistir. As mentiras em que me refugiei faziam acreditar que vivia. A honestidade tem implícitos a resistência, o exemplo, a discórdia, a acção. Todos incapacidades que assumi, inocentemente, com frequência. Infiel a mim próprio, percorri caminhos paralelos ao traçado que deveria ser o meu, alguns sem retorno.
Porque há duas espécies de Homens: os leais e os que mentem.
Fui comandante inepto, subalterno de incompetentes e servidor de incapazes; nem sempre por esta ordem. Corrompi-me a construir destinos que, por simpatia apenas, construíam o meu. Perdi batalhas e guerras, das que venci não me restou particular orgulho, por não serem maioritariamente minhas; das outras não há registos que me socorram.
Porque há duas espécies de Homens: os que montam e os que se deixam montar.
A cedência a paixões, fraqueza congénita, condenou-me por fim a aceitar o meu destino. A medo encetei um livro e li-o em desespero. A dificuldade de lidar com os conceitos, de voltar a apreender o alheio, o medo do regresso à intrusão na essência de alguém, fui-os dizimando em parágrafos, páginas, capítulos. Entreguei-me por fim, como quem reconhece uma amante e a beija com fervor, sequioso, após anos de contenção. Voltei a temer perder a escrita outra vez.
Porque há duas espécies de Homens: os que amam e os que só conhecem o desdém.
Descuro com frequência os interesses que não me interessam, sinto-me um pária também, por vezes; mas os que me interessam persigo-os com fervor, sem esperança na conquista de adeptos para a minha causa. Uma tenacidade invisível mas indelével impele-me como um instinto, por vezes para o abismo, destino que pelo meu egoísmo atinjo sozinho.
Porque há duas espécies de Homens: os que vivem e os que vão morrendo.
Gosto de caminhar na areia húmida, onde as ondas se abatem; ver essa força imensa recear os meus passos e recuar perante a minha insignificância. Uns dias sou da terra, noutros sou das águas, nestes chego a acreditar que é a terra que me teme e que me deixará cavalgá-la eternamente; é nos outros que reconheço como estou enganado.
Porque há duas espécies de Homens: os que escutam o mar num búzio e os que recolhem búzios no mar.

Por haver apenas duas espécies de Homens, e não me enquadrar em nenhuma, suspeito que poderei ser afinal o único cromo desta caderneta; um exemplar de uma terceira espécie, em vias de extinção mas sem protector que me valha.



(Algures na Baixa - Lisboa)

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